27/02/2006

Uma coisinha legal sobre o show...
Desde então, a progressista cidade mineira de Varginha passou a ser uma verdadeira locomotiva do país.
Rock'n'roll and rabugice
Já viram que eu não escrevi foi nada sobre os Rolling Stones. Pois é. Passaram-se os dias e eu perdi o gosto. Com o correr dos dias também veio o show do U2, e eu encontrei quem escrevesse, com mais estilo e (falta de) humor exatamente aquilo que eu gostaria de dizer. Com a palavra, Roberto Pompeu de Toledo (Histeria, patetice e rock'n'roll)

A infausta passagem pelo Brasil de dois famosos conjuntos de rock deu ensejo a que os meios de comunicação em geral, a televisão em particular, se dessem com gosto e empenho a uma de suas práticas prediletas – a de incitar a histeria e/ou idiotia da população. "O que você vai sentir quando eles entrarem no palco?", perguntava a repórter, esticando o microfone para um grupo de mocinhas, instantes antes do show do grupo U2. "Vou morrer", disse uma. "Vou surtar", disse outra, tudo entre gritinhos e pulinhos. Era o que a repórter queria ouvir. Morrer, surtar – que delícia! Volta para o estúdio, e os apresentadores do telejornal sorriem, satisfeitos como um político do PSDB depois de esvaziar uma garrafa de Amarone della Valpolicella, corte Sant'Alda, safra 1995, no restaurante Massimo.
Dias antes dos shows, como é de rigor, já havia pessoas acampadas nos locais onde aconteceriam. Imagina-se o desconforto desse novo povo das ruas, a dormir mal, comer pior e sofrer os efeitos dramáticos da falta de um banheiro. Alguém dotado de um mínimo de espírito humanitário procuraria encaminhar essas pessoas a um tratamento psicológico. Não os meios de comunicação. Estes se deleitam diante de tais faquires do universo pop. "Há quanto tempo vocês estão aqui?", pergunta-lhes o repórter. "Dois dias? E o outro lá – três? E o outro – cinco?" E é um maravilhamento só. "Vale a pena?" "Vale, qualquer sacrifício vale." E a televisão exalta o exemplo desses jovens que deixam tudo, conforto, estudo, trabalho, em honra dos ídolos. São os nossos muçulmanos, em tempo de hajj, quando vale qualquer sacrifício, inclusive morrer pisoteado, para visitar os lugares do profeta.
O líder dos Rolling Stones marcha com passos enérgicos de um lado para outro do palco, move os braços de modo decidido, nunca sorri. Abstraia-se o som infernal e, se aquilo fosse cinema mudo, teríamos a cena de um recruta que se perdeu do regimento e procura desesperadamente o rumo, no meio do campo de batalha. Ou, então, a ação de uma dona-de-casa enraivecida, andando de um lado para outro da casa, a mostrar à faxineira como ela fez tudo errado. Não, ninguém está lá para tapar os ouvidos e brincar de cinema mudo. Na verdade essas pessoas estão lá para algo que vai além de ver ou escutar – adorar. "Agora ele se aproxima do público", conta o repórter. "Vai ser o delírio." É o delírio. Se não fosse a presença das câmeras de TV, talvez não se configurasse delírio tão delirante. A TV e o delírio têm tudo a ver.
O líder dos Rolling Stones, na boa tradição do rock, é um nulo em matéria de política. Um "alienado", como se dizia, numa ofensa pior do que xingar a mãe, na época em que ele era jovem. Já Bono, do U2, se entrega à militância em favor de todas as boas causas, tantas que alguém lhe precisaria dizer: "Calma, rapaz! Assim nem Madre Teresa de Calcutá..." Ele considera que o presidente Lula está fazendo muito para diminuir a fome e a pobreza no mundo. Com isso, aumentou em 100% a quantidade de pessoas que partilham desse pensamento – agora ele se soma ao próprio Lula. Ao ir ao encontro do presidente brasileiro, Bono disse que visitar Brasília sempre fora seu sonho. Como? Alguém pode ter o sonho de visitar Brasília? Ou o rapaz está mal, muito mal de sonhos, ou foi insincero. E, se foi insincero nesse ponto, será que também nas causas que defende...
Não. Afastemos as suspeitas descabidas. Importante é que ele chamou uma mocinha de Volta Redonda para dançar no palco. "Que sortuda", exclamou a apresentadora do telejornal. A apresentadora aparentemente gostaria de estar no lugar da mocinha. Ou talvez não. Talvez o que ela quisesse era mostrar que também estava no clima. Não cabiam dissensões. A TV empenhava-se em fazer crer que era saudável, bonito e razoável que todos os brasileiros reagissem com efusões desmesuradas, quanto mais desmesuradas melhor, à presença dos ídolos do rock. O marido da mocinha de Volta Redonda disse que não teve ciúme, nem quando ela afagou o queixo do cantor, bem apertadinha, nem quando lhe sapecou um beijinho na boca. "Fã é assim mesmo", disse. A mocinha, naquele momento, era o retrato do ser humano subjugado. Desceria aos infernos com seu ídolo, o seguiria nas batalhas mais espinhosas pela justiça no mundo, juntaria à dele a voz pelo hexa do Brasil e pela glória da irredenta Irlanda. Fã é assim mesmo.
Bono, portento de tolerância que é, uniu os símbolos do cristianismo, do judaísmo e do Islã na mesma faixa enrolada à testa. Em outro momento, recitou os nomes dos países da América Latina e, quando falou "Argentina", o público vaiou. A platéia provou que, em matéria de tolerância, não é digna de Bono. Em compensação, os coleguinhas de escola do filho brasileiro de Mick Jagger, o homem dos Rolling Stones, mostraram que estão no clima. Quando Jagger apareceu por lá, causou tumulto. Provou-se que as lições da TV estão sendo bem aproveitadas. A histeria e a parvoíce já se implantaram entre as novas gerações. Com isso está garantida sua continuidade.

20/02/2006

Rolling...
Estou criando coragem para escrever, hoje, segunda-feira, sobre o show de sábado (ontem fiquei de moleza o dia todo, nem liguei o computador). Desde já, uma constatação: eu acho que vi outro espetáculo, diferente do que está nos jornais...
Em uma das primeiras sessões, minha analista disse que eu "tinha uns insights ótimos, percebia tudo muito depressa". Depois disse que eu era "inteligente demais, entendia tudo demais". No último sábado, afirmou que eu "tinha muita noção das minhas coisas"... Boa ela, hein? Muito boa... :))

06/02/2006

A coluna de hoje do Joaquim Ferreira dos Santos, de quem ganhei um doce afago e a promessa da cumplicidade na vingança...

A mulher seqüelada
Seqüelada. Haverá prazer maior do que uma palavra nova numa mulher das antigas? As letrinhas morrem de rir, a moça infelizmente não pára de chorar e de perguntar. O que aconteceu? Seqüelas doem. Por muito. Ligue seu aparelho estereofônico e escute as duas. Já teve a mulata que não está no mapa, o remédio que o doutor me receitou e tantas outras. Todas lindas. As certinhas do Lalau, as garotas do Alceu, as dez mais, as chacretes, as existencialistas com toda razão, as boazudas, as frenéticas, as sufraguetes, as marias chuteiras, as socialites, os brotos, as gatinhas, as cachorras e as eternas cinéfilas cubistas do Estação. Agora é a vez da mulher seqüelada, a mais triste. O trema é antigo, o sentido novo. O problema, coitadas, o mesmo de sempre. O medo, a quase certeza, de que neste momento existe outra tocando a pele dele e o enleio de ontem, o conluio da véspera, foi o último. O medo, a absoluta certeza de constatar que o amor é feito de mãos e dentes, o resto se desfaz na vaguitude dos espíritos, no desespero das saudades, na obsessão eterna, amém. A seqüelada não está no dicionário. Houaiss. Aurélio. Eles não sabiam ainda. Perderam este bonde semântico. Homens tradicionais, todos bem casados, não sabiam nada do pegapracapá amoroso. Nossos dicionaristas não tiveram o prazer. Pularam o verbete. Maysa era uma seqüelada quando cantava meu mundo caiu e me fez ficar assim. Estropiada. Desparagonada. Anarquizada. De quatro. Ela sofria. Dois imensos olhos não pacíficos chorando abandonos semestrais. Nora Ney, então, nem se fala. Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de bem me quer. Hoje há cantoras ecléticas, seqüelada nenhuma se admite. Seqüelada, ouço-as maldizer, ficava a vovozinha. Não que seja praga-e-budapeste insuperáveis. Não lhes ria. Acontece um dia e a todas em sua hora de desespero o rótulo lhes caberá naquele esgar de sempre. Ali, na esquina do buço dourado com a covinha da bochecha. Todos saberão ou, os mais míopes, ouvirão que você não balbucia outra coisa. Ele. Sumiu. Volta? Há a mulher da vida, a Maria ninguém, a canhão, a hippie, a vai com as outras, a vizinha faladeira. A seqüelada já estava nas cavernas egípcias, nenhuma novidade no seu despudor sofrido. Os gregos, os portugueses, os fenícios, todos os homens em algum momento iam embora e deixavam a pobre coitada a perguntar para os amigos. Por quê? Disse que me queria. Rimou as mais doidas poesias. O amor é sentimento ou matéria? Dar ou receber? Por que o espírito é tão possessivo? Noventa por cento do tempo dela são dedicados a tentar entender o na maioria das vezes verbalmente inexplicável. Ele não ligou. Disse que vinha. A mulher seqüelada é isso que você já percebeu. Aquela que ficou traumatizada pela tristeza que Vinicius anunciava na canção. Se a vida é a arte do encontro por que tanto desencontro nessa vida. Eu encontrei uma seqüelada dias atrás e ela me foi sincera no pedido. Que eu a ajudasse a colocá-la no sono daquele certo homem e ele nunca mais dormisse em paz. Nunca mais acertasse o tom de uma música, nunca mais concordasse o verbo com o sujeito, nunca mais acertasse o foco e a luz de uma maldita foto. Que a seqüela atravessasse a rua, sem sinalizar seu novo rumo, e de surpresa, como o carcamano tinha feito com ela, como uma Pajero desgovernada, agora o atingisse — e eu amanhã publicasse no jornal a mais linda das notícias. Que os sinais vitais do indigitado, o seu orgulho de macho, a soberba dos que abandonam, já não estavam mais preservados. Havia se ido desta para uma pior e que a assombração de seu grito de orgasmo pairasse toda noite sobre aquela última a quem ele havia tocado a pele. Só assim ela, a seqüelada que me pede ajuda, se libertaria de reinventar todos os dias os olhos de desejos que ele, ainda anteontem pela manhã, debruçava sobre seu corpo. Só assim ela se livraria do gosto da hóstia consagrada que em seguida ele colocou, recitando o mantra lírico-safado dos amantes, em sua boca arfante. Ela queria mais, mais, mais, e agora sabia tudo em vão. A seqüelada é aquela que se espanta com a voz do corvo na orelha. Nunca mais. Nunca mais. Certas noites ela pede para que a igreja evangélica logo ao lado amplifique dez vezes os gritos de aleluia e lhe apague o corvo das orelhas. Mas o corvo também tem seu sistema de som e TV. Nunca mais é nunca mais. Fala mais alto. Maria Adelaide do Amaral, da minissérie “JK” me perguntou outro dia. Como se dizia lésbica nos anos 50, já que lésbica propriamente não se dizia nos anos dourados da repressão sexual. Cassandra Rios parece que carregava o estigma, nenhuma mais. Sexo não era essa alaúza de agora. Eu arrisquei paraíba e parece que alguém vai ser chamada assim na TV. Não vem ao caso. Seqüelada não tem nada a ver com isso. Pelo contrário. Ela gosta é dos homens, mas geralmente dos homens errados. Tem a ver com a paraíba, mulher macho, sim senhor, apenas porque os rótulos são cruéis e ajudam a entender em quatro sílabas as 500 páginas da odisséia de Ulisses. Entre os adolescentes, por exemplo, há uma seqüelada diferente. Para eles a seqüelada é apenas a mulher lerda, meio viajandona , que não entende bem as coisas. Sofre das idéias, os buracos da maconha já apagando uns arquivos da memória. Na faixa acima dos 30 anos as seqüelas são outras. Atacam o coração. A seqüela identifica a vítima de um cretino qualquer que prometeu mundos, fundos e uma viagem para os cafundós mais profundos onde ninguém interromperia a pressa de suas mãos e dentes. Foi o que ela entendeu e agora ei-la aqui. De quatro, feito a outra. Na véspera do Natal, na noite de aniversário, minutos depois de ter sido presenteado com uma caixa de DVDs dos Beatles, o cara não explicou muito bem o que estava acontecendo para aquele súbito tremor nos artelhos. Arriscou umas palavras vagas sobre a complexidade de se estabelecer um tempo comum entre eles. Parou no meio de uma frase sobre a falta de sintonia entre a ambição física e a correspondência dos sentidos. Olhou turvo para a mosca varejeira que passeava sobre a pia. Bateu a porta como se fosse ali no quiosque comprar flores. E foi. Para sempre. Nem se dignou ao aviso. Era a extrema-unção dos católicos, a saideira do Braca, o baile da cremação das tristezas dos carnavalescos, o último acorde para os melômanos, o trilar do apito para os boleiros. Bateu a porta e inaugurou no peito de mais uma muher a seqüela terçã que a tudo embaça e não deixa crer que amanhã, e nem mesmo depois do carnaval de satisfaction dos Rolling Stones, nunca mais será outro dia. Maldito o amor lhe seja.