07/12/2003

Granadas, fã-clube, bons cachês e escolta armada
Indo aonde o povo está

Todo artista tem histórias para contar de shows feitos nas piores condições, nas circunstâncias mais difíceis. As comunidades consideradas perigosas lotam os locais dos shows, esforçam-se para agradar o ídolo presente e emocionam-se sinceramente com um simples aceno ou aperto de mão, mas também são responsáveis por momentos de tensão e medo.
Quem já faz sucesso, ou quem ainda pretende fazer, sabe da importância desse tipo de público, ativo participante de fãs-clubes, mas sabe também que não é fácil cantar descontraidamente em verdadeiros bunkers, diante de uma platéia fortemente armada.



São 22h. Um dos muitos grupos de pagode que animam os fins de semana cariocas se prepara para mais uma apresentação. A esta hora, como de costume, começam a se reunir na casa de um de seus componentes, de onde seguirão, num pequeno comboio, para o local do show.
Hoje farão aquilo que se chama "show de comunidade": espetáculos patrocinados pelos donos das bocas-de-fumo, comemorando o aniversário de alguém importante na hierarquia do "movimento" ou apenas para manter a simpatia e a fidelidade dos moradores do local. A preocupação entre os músicos já é visível. Não é fácil saber que, em algumas horas, estarão no centro de uma das comunidades mais violentas do Rio, cenário do confronto entre as diversas facções do tráfico que dividem a cidade. Mas é trabalho, é preciso ir...
Seguindo a regra de ouro dos morros- o silêncio - o porta voz do grupo evita citar nomes. É um sinal de respeito àqueles que, segundo ele, respeitam quem não os atrapalha.
- E eu não estou aqui para atrapalhar ninguém...
Encarando tudo profissionalmente, analisa os altos e baixos do cotidiano do artista:
- A nossa profissão faz com que a gente vá do caviar até a fome. Num dia estamos numa casa de espetáculos com os maiores requintes, num camarim regado a bebidas variadas e frutas e no dia seguinte estamos num show de comunidade, onde o palco é feito de placas de compensado e estruturas de andaime, o som é uma mesa de no máximo 16 canais e o operador veste uma camiseta e um chinelo de borracha...
O show de hoje, na verdade, seria de um outro grupo, mais famoso e popular, mas nem todo mundo tem coragem de ir. Além disso, um dado estatístico curioso muitas vezes impede a contratação deste ou daquele grupo para este tipo de apresentação. É que, vindos dos níveis sociais mais baixos, os componentes dos grupos de pagode têm origem na mesma camada que alimenta as fileiras do Exército, da Polícia Militar ou das firmas de segurança. Muitos são ex-soldados, paraquedistas, ex-policiais militares, parentes de policiais na ativa ou já trabalharam na noite. Subir ao palco nestas circunstâncias envolve o risco da identificação por algum desafeto presente na platéia, e ninguém quer se arriscar.

00h30min O comboio com os músicos, operadores, roadies e instrumentos começa a subir o morro. É a pior parte, porque é sempre uma surpresa.
"Subir" pode ser só forma de expressão. Cada localidade tem uma formação geográfica diferente e é guardada e fortificada de modo específico. Enquanto, por exemplo, o Morro da Providência tem uma única subida, íngreme e estreita, o Complexo do Alemão possui diversas entradas, o que exige uma logística muito maior.
O caminho da subida é dividido com pessoas que estão indo buscar drogas para consumo e a trilha é pontilhada de "guaritas", de onde os soldados vigiam e fazem revistas e abordagens.
Chegando num ponto de encontro previamente combinado, a van do conjunto pára e se identifica. Um representante da comunidade, então, junta-se ao grupo e serve de guia ou batedor, garantindo que está tudo "limpeza". A presença deste batedor evita outras revistas e interceptações mais truculentas.
- Pô, aí! A gente tava esperando vocês! E aí, shock? Pô, firmeza!? Legal, tá tranqüilo, tá tudo certo! Aqui é limpeza, pode ficar relax que é tranqüilo...
Essa mensagem cifrada quer dizer simplesmente sejam bem vindos...
O líder do grupo tem o incômodo privilégio de ser apresentado diretamente aos chefes, que agradecem, com sinceridade, a "moral" dada à comunidade.
A curiosidade é mútua.
- Eles fazem questão de conversar com a gente. A mesma curiosidade que a gente tem com relação a eles - o tipo de vida, como é, como não é - eles têm com a gente. Perguntam como é fazer shows, ter fãs...

1h . O grupo entra no palco e é recompensado pelo carinho do público. É a hora em que os músicos podem relaxar um pouco. As pessoas cantam o repertório do começo ao fim, inclusive as músicas que não estão na mídia, sinal de que têm o disco em casa.. Gritam, tentam tocar nos cantores e músicos, têm o artista como uma miragem.

- A gente sabe que não pode deixar de fazer show pra eles. Não por estarem fortemente armados, que de maneira nenhuma eles nos obrigam a fazer nada, mas sim porque é um povo que participa, que compra o teu disco, que curte a tua música, que liga para as rádios, que está ali para aproveitar mesmo. Não é aquele cara que vai no teu show e está preocupado em azarar. Eles estão ali para sambar mesmo...

A platéia parece um manual de antropologia urbana. Rapazes e meninos franzinos e mal vestidos, portando escopetas, AR 15, mochilas com granadas, Uzis, pistolas e rádios com a naturalidade de quem carrega um brinquedo ou um livro. Crianças de 1, 2 anos, bebês de colo, mulheres grávidas, perambulando no meio daquele monte de armas e drogas, que são consumidas abertamente. Pessoas que, visivelmente, moram em outros bairros, mas que ficam no morro a noite toda porque sabem que lá têm condições de comprar a droga e consumir sem a menor repressão.
Nada pode dar errado. Um show ruim é uma possibilidade na qual ninguém quer pensar. O operador de som explica com uma metáfora muito curiosa o sentimento de medo presente:

- É como se houvesse um grave ressonando em todo lugar, a noite toda. Um ronco, uma zoeira na cabeça... Mas não é, é a tensão, é o clima que é pesado...

2h15min Acaba o show. Os roadies começam a recolher o material e é a hora de receber o cachê. O pagamento é feito em dinheiro, sem pechinchar e em notas de R$5 e R$10 - o preço dos papelotes e dos cigarros de maconha. Também é a hora das despedidas, em que o anfitrião vem dar um aperto de mão e novamente agradecer a presença. Faz questão de tirar uma foto com os componentes do grupo, juntamente com o seu filho, de apenas um ano e que esteve ali o tempo todo, circulando em meio às armas e drogas com a mesma tranqüilidade com que circularia se fosse uma festa infantil.
O grupo agradou, o show foi um sucesso e isso garante que chefes de outros morros farão contato para agendar novos espetáculos. O circuito das comunidades é amplo, pode ser lucrativo e obedece a uma lógica própria. Só vendo para crer.

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"A gente vive pouco, mas em compensação a gente faz o que quer..."

É meio constrangedor você ver garotos de no máximo 14 anos com uma Uzi pendurada no pescoço, tomando conta como se fosse uma fortaleza. E no entanto você chega e é super bem tratado, tendo o máximo de atenção, o máximo de cuidado para que nada aconteça com você lá em cima.
Isso me deixa um pouco magoado, um pouco preocupado, porque a gente não sabe o que será daquelas crianças, que estão ali no meio, vendo aquela arma...Isso aí me assusta, a gente pensa nos nossos filhos, na nossa família, e vê que não tem controle de nada.
Uma coisa me deixa um pouco mais confortável: é o respeito pelas pessoas que não incomodam a eles. Eles têm aquilo ali como um meio de vida!
Um deles, conversando comigo, disse que eles podem viver pouco, mas no pouco que vivem fazem o que querem. Isso pode ser uma maneira de viver. Pode ser que ele esteja certo, pode ser que esteja errado... não sei se a gente deixando de fazer o que quer também está deixando de viver.
É uma experiência que não é agradável, mas que acaba te enriquecendo como pessoa"

(L. líder do grupo)