30/11/2003

Achados e perdidos

Gosto disso.É do fim do século passado, quando ainda estava na faculdade e quando a vida ainda era outra...

O dia em que me tornei repórter de polícia

Depois de passar o dia inteiro posando de samambaia de cenário na editoria do Segundo Caderno, ou seja, decorando o ambiente sem fazer parte da trama, eu juntei as minhas coisas e comecei a voltar para casa. Terça-feira, sete de setembro, último dia de um feriadão cheio de sol e que marcou de forma não-oficial do começo do verão: ruas cheias, futebol e briga de galeras em Copacabana.
Na Radial Oeste, o primeiro susto. Parado na pista, um ônibus vindo da praia, um carro da PM e uns 20 moleques encostados na mureta do metrô. Parecia cena de rebelião na Febem.Todos de cara para a parede e mãos na cabeça, levavam a devida dura da autoridade competente.
Se isso acontecesse uma semana antes, a cena não teria merecido mais do que uma olhada pelo retrovisor. Mas agora, não! Agora eu era repórter-auxiliar, nome muito mais bonito que "estagiária" e cujo peso me obrigava a ver notícia em cada pedra do caminho.
Como a função principal do repórter-auxiliar é mostrar serviço, fiz a volta com o carro, mas no que passei outra vez pelo local da ocorrência, a coisa já havia se dispersado. Não era nada, só um rotineiro abuso de poder disfarçado de ação preventiva. Perdi o furo.
Positivo e operante, vamos em frente...
Para quem sai do Centro em direção a Jacarepaguá, a Avenida Menezes Cortes é passagem quase obrigatória. Lugarzinho pitoresco, vez por outra agitado por um animado tiroteio. Subindo a estrada, entrando cerca de um quilômetro naquele território, três carros da polícia, um bolinho de gente e um corpo no chão.
Passei batida, meio em pânico, não deu nem pra saber se estava vivo ou morto.
Volto, não volto... e se sair tiro? E se o cara estiver todo estraçalhado? E se não for nada, só uma bobagem? Vai ver que o cara só caiu da bicicleta...Nisso o retorno foi chegando. Vou, não vou, entrei, voltei. Só que, passando de novo pela cena, não tive coragem de parar!! Mais um quilômetro, dessa vez voltando, em direção ao Grajaú.
Aí o grilo falante disparou no fundo da cabeça. A consciência de que eu havia estudado quatro anos para ter o direito de estar ali, de que eu tinha que ser repórter, de que jornalista não encerra o expediente como funcionário público, de que o registro de um ato de violência tem mais importância do que a egoísta integridade do meu lindo carrinho e a irresistível vaidade de contar primeiro aquilo que ninguém sabia ficaram mais inapeláveis do que o medo de levar um tiro. "Volta lá e apura!", ordenava um editor-fantasma, aqui dentro do meu cérebro.
Sobe morro, desce morro, retorno, pisca-alerta. Começando tudo de novo, dessa vez eu parei. Aí comecei a me sentir importante... Pendurei na cintura aquele crachá que abre todas as portas e me apresentei:
"Boa tarde. Quem me ajuda com a apuração?" Os PM’s se olharam, ME olharam, avaliando, e apontaram para um sargento.
E agora, o que é que eu faço? Tanto estudo, tanta sociologia, e o coração quase saía pela boca na hora de fazer esta apuração corriqueira. (Corriqueira, sim, porque morte de soldado do tráfico já não é mais Notícia, com "n" maiúsculo, há muito tempo...).
Perguntei o básico, para ver se não errava muito. O infeliz do sargento ainda me jogou pra cima do pai do garoto, só para tornar minha vida mais difícil - "Fala com ele, ali, que é o pai do morto. Ele é quem vai saber explicar tudo pra senhora".
O retrato era o óbvio: 20 anos, sem estudo, sem profissão definida, envolvido em guerra de quadrilha, expulso do morro, voltou e se deu mal. A morte aconteceu fora dali, mas o corpo foi desovado naquela vizinhança a título de exemplo.
Uma coisa engraçada, embaraçosa até, é perceber o orgulho que se sente ao usar o jargão do repórter. Ligar para o jornal e perguntar:"um cadáver na Grajaú-Jacarepaguá, vocês já "subiram" isso aí? Não? Então eu vou "apurar" e daqui a pouco eu passo pra vocês..." , é como falar uma língua só para os eleitos, o idioma dos escolhidos.
Sem saber, o maior elogio quem me fez foi o sargento da PM quando perguntou "mas você veio sozinha?". Na verdade o que eu ouvi ele dizer foi "Puxa, mas como você é corajosa, valente, independente e todas essas coisas... ". Porque era assim que eu me sentia! Olha eu lá, no meio do mundo, encarando, fazendo as coisas acontecerem!!
Cadáver devidamente "entrevistado", notinha passada, missão cumprida.
Claro, dei um monte de mancadas. Comecei perguntando "como vai?" e dizendo boa tarde para o pai do morto. A minha tarde talvez fosse boa. A dele, com certeza, não. Também não perguntei onde foi o tiro. Eu nem tive coragem de olhar direito para o cadáver!!! A criatura estava lá, coberta com um jornal. E se eu olhasse e visse o buraco da bala? E se faltasse um olho? E se a cabeça estivesse estourada?
Me lembro da cor amarelada que a sola dos pés começava a ganhar, da pedra sobre o peito, que ajudava a segurar o jornal que o cobria e da expressão do irmão, que ainda segurava a mão do José Ricardo. José Ricardo, sim senhor, porque morto tem nome, seja bandido ou seja mocinho, e em notícia que eu escrever nunca vai ser o "indivíduo" ou o "meliante".
Cheguei em casa correndo e abri a Internet. Estava lá a minha notinha, no Plantão, com horário de entrada e tudo.
O meu diploma de jornalista recebia o seu primeiro carimbo de "OK"...

17/11/2003

Mínima moralia *
Uma:
Deus cuida da minha vida... e você da sua.
Outra:
Deus deu uma vida só pra cada um, pra cada um poder tomar conta DA SUA direitinho.
Uma terceira:
Sugiro que você compre um gato. Assim, além da sua própria vida, você terá as sete do bichano para se ocupar, e deixa a minha em paz.

* O título é um plágio descarado do livro "Mínima Moralia: Reflexões da Vida Danificada", de Theodor Adorno, mas eu não resisti.

16/11/2003

Meu irmão Macunaíma

Ontem parte da Família Simpson foi ao show do Marcelo D2. Longo e um tanto desorganizado, o espetáculo nem foi tão bom, mas não importa: é só um motivo para falar aqui de um dos meus irmãos, que estava lá no palco, "vivendo de música", como orgulha-se em dizer.


"Quando nasceu, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai ser gauche na vida"


E assim continua indo, em sua "irresponsabilidade amável" porém precavida, de quem mantém um olho no padre e outro na missa. Exemplar do bom malandro, vai chegar aos 40 sem sair dos 16. Feito pai em um casamento equivocado, tomou para si a tarefa de cuidar do filho - orgulho da raça - e o fez com fúria e competência: com a primeira, brigou pela guarda do menino, conquistada de fato sem passagem pelo Direito. Com a segunda, presença constante, companheiro moleque, atento, disciplinador, vai criando um bom cidadãozinho, com o auxílio luxuoso da avó, dona de uma pedagogia instintiva admirável.


"Divertido, espontâneo, inconseqüente, com uma inocência que não exclui espertezas de Macunaíma", totalmente "lá-vem-o-Brasil-descendo-a-ladeira", incorporou o rigoroso código ético e moral de nosso pai, suingado pela vocação para o marginal de nosso avô. Filho preferido, tem uma aura de líder que nossa irmãzinha (esta já um mulherão de 1,70m) diz irresistível.
- Vai dando um negócio assim por dentro e a gente não consegue dizer não...
E antes que perguntem, amigo meu não tem defeito: não vou dizer aqui que ele é teimoso, que abandonou a escola ou que é abusado. Nada disso. Meu irmão Macunaíma segue, multiplicando com virtude e fortuna o Muiraquitã que Deus lhe deu.

(Em tempo: as citações são todas de Carlos Drummond de Andrade, em "Poema de sete faces" e "Mané e o sonho")

Um aviso:
"Assim, leitor, sou eu mesmo a matéria deste livro, o que será razão suficiente para que não empregues teus lazeres em assunto tão fútil e de tão mínima importância" (Montaigne, Michel - Ensaios)


E mais:
"A obstinação e a convicção exagerada são a prova mais evidente da estupidez. Haverá algo mais afirmativo, resoluto, desdenhoso, contemplativo, grave e sério do que um burro?"(Idem)